sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Tormenta.

Um: Começo.


Chegamos. Deparo-me com árvores, com flores e com frutos. Deparo-me também com o cinza. Um cubo cinza, com janelas e um ar de clausura. Tive uma sensação estranha, de que viveria minutos intermináveis a partir do momento em que entrasse por aquela porta de vidro. E os foram. Infindáveis.
Estava aberto a novas expectativas, até aquele momento. Não. Até o momento que a terceira porta fora destrancafiada após fechar a segunda porta, que só foi aberta depois que a primeira foi cerrada. Bem vindo ao labirinto dos teus medos internos. Ou pelo menos dos meus.
No caminho: corredores. Nos corredores: pessoas. Nas pessoas: a loucura. Na loucura: nós ali presentes. Em nós: não havia nada.
Foi-nos sugerido que as más impressões e os pré-conceitos fossem deixados do lado de fora, lá, três portas atrás, em uma distância que podiam assegurar que não atrapalhariam nosso desempenho. Desempenho? É. Estávamos ali a trabalho, não como um individuo familiar, não para fazer amizades. Estávamos ali para constatar laudos, fichas, pranchetas e casos clínicos. Para entender sobre a instituição, sobre os internos, sobre as suas vidas, tão parecidas com as nossas, a não ser por um único instante que os faz nos diferenciar ali dentro: um surto.
Talvez não fosse a única coisa que nos diferenciava naquele momento. Suas vestes precárias, muitas vezes rasgadas; A presença do cigarro incondicional, único meio que possuem de fugir dali; O cheiro nauseabundo dos remédios tarja preta, letais a sanidade de todos.
Sem contar a presença do corpo humano. Seu toque e seu cheiro, tudo que descaracteriza o biológico e torna o estudo científico, com base experimental, das funções orgânicas e dos processos vitais do ser vivo mais ameno.
Passam-se segundos em formas de minutos em formas de horas. É horrível se ver trancado em corredores, salas e quartos com aromas nada sensíveis, todavia fora deveras tranqüilo perto do soco no estômago que recebi em seguida: “Aqui é a sala de TV. É aqui que nos juntamos e vemos o que esta acontecendo no mundo lá fora.” Eu estava trancado naquelas paredes junto com todos, porém, eu posso sair. Agora surge uma questão: sair é a melhor opção?
E então se termina o dia. Dores comprimem meu coração.


(...)


Dois: Meio.


Já estou preparado. Minha carapaça de insensível a sentimentos externos foi vestida e a minha lança de força de vontade, que pode ser vista também como vontade de fazer a diferença, vem à mão. Adentro o castelo monocromático e então, vamos à batalha. Não. Hoje faremos algo diferente, seremos apenas ouvintes. Ênfase na palavra apenas, que de pouca quantia não trás nada. É o inverso.
Um deles vem. Na verdade, é induzido a vir, afinal precisa de nós aqui, ou seríamos nós que precisamos dele aqui? Dúvida que me é esclarecida assim que a questão se desvela: Precisamos dele.
Círculo.
Nervosismo.
Expectativas.
Procura da fantasia.
Resposta da realidade.
Olhos fixos nos olhos desviantes
Até que ponto um entregador de pizza, do centro de São Paulo, pode ser um advogado bem sucedido E jogador de futebol profissional - mesmo que da terceira divisão?
Pode se deixar fluir uma memória fragmentada com ares de entendimento ou intervir com pré-conceitos? Essa resposta eu sei: Sem superstição ou prevenção. Prejuízo. É conturbadora a maneira como lidamos com o inacreditável e inalcançável mundo da fantasia. É ainda mais conturbador acreditar que possa ser realidade.
Distanciamento afetivo ou presença inócua? Há de decidirmos em pequenos grupos, já que por si só, não somos mais capazes nem ao menos de organizar o fluxo contínuo das idéias.
Eu discurso sobre as idéias, não sobre os ideais. Estes são complexos, não dependem apenas do rei que sabe – ou não sabe – que a insanidade precisa tanto de quem é sóbrio como do seu tempo.
O tempo acaba com as gotas de suor escorrendo por entre as linhas da vida e do amor, do futuro e do agora, presentes na palma da minha mão.
Assim como a minha própria força de contrastar realidades e ilusões esvai-se, as marcas no corpo são ocupadas pelas vezes de expressão, pelas vezes da dor e vezes do amor. Surgem então as marcas na alma e a minha armadura desmonta.


(...)


Três: Tudo, menos o fim.


Conhece aquela sensação agradabilíssima de quando você freqüenta certo lugar por algumas vezes e tem a impressão de um segundo lar acolhedor, que sempre estará de portas abertas para você – que nunca recusará aceitar um convite para adentrar-te – cheio de afeto, carinho? Calor. Este lugar, para mim, nunca será um hospital psiquiátrico.
As nuvens caminham, escondendo o dia ensolarado e, então, o vento me ceifa. Gélido. Cinza. Habitual. Acabo de chegar ao limite da minha saúde. Não. Retomo minhas forças e percebo: Eu cresci.
No dia que estamos o fim é apenas o começo. A atividade se inicia. Colocamos-nos apostos e a vista disso eles vêm ao nosso encontro. Surgem dúvidas, sorrisos, palavras perdidas, olhares – sempre os olhares – alegres, felizes, amorosos, tristes, sórdidos, malditos, sádicos. Ao que me parece, todos precisam de atenção, inclusive eu.
Uma mão surge junto a minha e eis que vejo a pequena borboleta branca a voar, colorida e colorindo, entre tantas borboletas rubro-negras o espaço físico-mental daquele estabelecimento. Ela sabe o que faz e isso me conforta.
De um lado o calor das mãos a fazer obras na argila úmida. De outro, a inquietude de mentes a projetar insatisfações por meio do tato. Surge um vaso capaz de carregar água a todo um povo que possui sede de sabedoria. Ergue-se uma foice, em nome da justiça e impunidade. Há certo e errado? Não aqui. Em lugar algum. A mente humana é o maior campo de centeio a ser fertilizado. Muito cuidado, os corvos hão de comer caso não colha.
Até que surgem ordens a serem seguidas. Superiores. Há a abertura do mar vermelho, separação dos judeus e egípcios. Quem somos nós?


(...)


Réquiem: A despedida.


Uma lágrima ameaça formar-se, mas não posso afirmar a sua procedência. Talvez seja por conseguir entender agora uma angústia antes presente que me sufocava e que não podia expelir. Um líquido viscoso que pelas entranhas e vísceras sempre se demonstrou denso, que fazia meu abdômen se contrair como punhaladas certeiras no fígado. Até então desconhecido pelo meu âmago ou ignorado pela minha consciência. Agora, no êxtase da minha integridade de caráter, o denomino: Loucura.



*Obs: Dedicado a todos os internos do Hospital Psiquiátrico São João de Deus.

domingo, 7 de novembro de 2010

Díspares.

A angústia tem surgido cada vez mais cedo. Antes era apenas a noite, porém com o Sol radiante ela nasce. Nasce ao meu redor. Nasce dentro de mim. Não apenas com o que vejo como também com o que leio. O Solista e A Casa do Delírio são pontos de vista certeiros quando tratam não de doenças ou patologias, mas da vida.
Temos na maioria das vezes uma boa intenção em rotular, sendo o significado uma caracterização, classificação e/ou consideração por algo que acreditamos ter que diferenciar dos demais. Neste momento surge a mim uma questão: O que realmente seria necessário diferenciar? Separar entre grupos distintos, distinguir por cores, tamanhos, lugares. Diferenças. Essa é a questão.
Não obstante um litígio mais pertinente aparece: Por que diferenciar algo? Seria impossível viver com as diferenças na nossa sociedade? Não podemos conviver com pessoas díspares ao nosso redor? Por que elas precisam ser isoladas?
A diferença entre as pessoas se encontra na maneira de lidar com as outras pessoas. O relacionamento interpessoal, as relações eu-tu, conceitos de transferência e contra-transferência, todos precisam de duas pessoas. Você e o outro.
Você já se colocou no lugar do outro?
Já pensou em como você é aos olhos de outros?
Como eles te julgam?
Julgar as pessoas, ou ‘simplesmente’ taxá-las, é sempre fácil. No caso d’O Solista, os personagens Steve Lopez e Nathaniel Ayers passam por algo similar. Eles são diferentes. E iguais. Possuem problemas, talvez um pouco diferentes, porém que repercutem nas suas vidas de forma similar. As destroem e ajudam a construir. Como todos nós. A diferença está... Onde está a diferença? Na intensidade? No isolamento?
Conforme seja a intensidade dessa diferença, desse isolamento, chegamos à discriminação. Sim, discriminação. Pessoas internadas são discriminadas, afinal “cada qual em seu cada qual e o lugar do louco é no hospício.”

E o seu lugar? Onde é?